Hellblade é um inferno

Guilherme Jacobs
5 min readAug 14, 2017

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Hellblade: Senua’s Sacrifice, o novo jogo da Ninja Theory, é um inferno absoluto. Ele é difícil, assustador, estressante e devastador.

Este também é um dos melhores jogos de 2017.

Hellblade não tem tutoriais, não explica, em momento algum, qual botão/tecla ataca, qual desvia, qual interage com o cenário. Não há marcadores de objetivos, árvores de habilidade, medidores de saúde ou qualquer outra coisa típica de videogames. Tudo que temos é Senua, a protagonista da história, e um mundo infernal baseado na mitologia nórdica que ganha vida por conta da psicose que a personagem sofre.

Então, enquanto todos os elementos acima — fatores adicionados ao longo dos anos por desenvolvedores com o intuito de ajudar e orientar seus jogadores — estão ausentes, Hellblade conta com recursos adicionados simplesmente com o intuito de atacar você. Senua escuta vozes que parecem estar sussurrando em seu ouvido. Elas zombam, distraem, irritam e duvidam da protagonista. Ela também lida com alucinações, delírios e traumas. Nada mais justo, então, que em troca do direito de controlar as ações de Senua durante as 8 horas necessárias para zerar Hellblade, nós tenhamos que enfrentar isso tudo também.

Tudo que a Ninja Theory adiciona e remove em Hellblade serve o mesmo propósito: colocar você dentro da cabeça de Senua. Ela já é uma guerreira com experiência, por que precisaria de um tutorial? Ela vê e ouve o mundo de uma maneira perturbadora por conta da doença que fez casa em sua mente, por que você não enfrentaria isso também? Tudo que ela tem para se defender é uma espada, então não há desculpa para habilidades especiais. A história a leva para o inferno, logo, esperar que poderíamos obter pedaços do ambiente ao nosso redor para, quem sabe, construir armas, é pura inocência.

A câmera mais próxima, algo que nos deixa sempre perto de Senua, acompanhando seus passos como uma sombra, até atrapalha às vezes. Manter todos os inimigos no campo de visão da protagonista na hora do combate é um desafio, mas por que isso deveria ser diferente? Se Senua sofre, se ela tem dificuldades, então em troca de acompanhá-la nessa jornada terrível e repleta de horrores, nós também vamos receber esse fardo.

Conhecida por seus jogos de ação com combates bem detalhados e repletos de opções, a Ninja Theory optou por um sistema simples em Hellblade. Há ataques rápidos, ataques fortes, empurrões, bloqueios (que se usados na hora certa atordoam os inimigos) e esquivas. É isso. Não há combos, outras opções de armas ou coisas do tipo. O elemento com mais cara de “game” é a habilidade de “focar” Senua, o que deixa todos os adversários lentos e a protagonista veloz por alguns precisos segundos.

O resultado desta construção é um sistema de combate simples de se entender, mas difícil de ser dominado. Executar as ações acima com excelência, na hora que inimigos fortes te cercam por todos os lados, requer precisão e atenção (algo difícil quando as vozes que te acompanham não calam a boca). Por conta disso, as batalhas que Senua enfrentam são cansativas, longas e estressantes.

Enquanto eu caminhava por Helheim, a ideia de entrar em mais combate me aterrorizava. Enquanto Senua progredia, eu orava pedindo para que mais inimigos não aparecessem. É um trabalho árduo derrotá-los, e quando uma longa sessão de luta terminava, quando eu finalmente via que um checkpoint havia sido alcançado, meu sentimento era de alívio, de que uma grande dor ficou pra trás. Eu cheguei a gritar “morre!” algumas vezes quando enfrentava um algoz mais forte. Eu precisava que ele sumisse. Sua presença me deixava inquieto. Me sentia cansado, ensanguentado, dolorido e ofegante quando passava por adversidades assim.

Eu imagino que Senua estava do mesmo jeito.

Esse estado de espírito se estendeu a todo o resto de Hellblade. Do momento em que Senua pisa nas terras nórdicas onde o jogo se passa, daquele primeiro minuto em diante, eu não queria mais jogar. Eu não queria segurar o W do meu teclado e andar pra frente. Tudo parecia assustador, tudo dava a impressão de ser letal. Um caminho de fogo, ilusões, escuridão e monstros se apresentava à minha frente. Cada passo era dado com o desejo de voltar, de abandonar isso tudo.

Mas eu persisti. As horas que se seguiram foram o mais próximo de tortura mental que eu espero chegar na minha vida. A Ninja Theory fez um trabalho primoroso na representação da deficiência psicológica que assola muitas pessoas — eu não sou especialista, mas as pessoas que ajudaram a desenvolvedora a criar o jogo são, e você pode ver o que elas têm a dizer no curto documentário de bastidores que acompanha Hellblade — e por conta disso, Senua’s Sacrifice é uma experiência como nenhuma outra em 2017.

A experiência é pontuada por uma das mais primorosas atuações na história dos videogames. Hellblade é, do começo ao fim, lindo. Jogando com tudo no máximo no PC, é difícil não ficar boquiaberto com os visuais que a Ninja Theory trouxe para o jogo, mas nenhum aspecto técnico é tão impressionante quanto a própria Senua.

Graças a um espetacular trabalho de captura facial, a brilhante e angustiante atuação de Melina Juergens é comunicada com maestria ao jogador. O que ela fez com seus olhos, seus gritos, seu choro, é singular. O esforço dela, alguém que antes era simplesmente uma editora de vídeo na Ninja Theory, para trazer Senua à vida é a força vital da triste história de Hellblade, que por sua vez parece um poema nórdico sobre a tragédia da invasão e holocausto realizados pelos vikings contra os celtas, algo mais preocupado em passar suas ideias, conceitos e sentimentos do que ser interpretado literalmente.

Eu espero ter convencido você de duas coisas. Jogar Hellblade é o oposto do que eu considero uma experiência prazerosa, mas jogar Hellblade é uma das melhores decisões que você pode tomar este ano. Ele é um inferno, e enfrentá-lo requer coragem tanto do jogador quanto de Senua.

Ah, e jogue com um fone de ouvido.

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